domingo, 19 de abril de 2009

Érebro

 A historia de uma Sombra…

 

“A Saudade o alegrava e entristecia…

É que ela faz a dor e o prazer,

Como a mesma luz faz a noite e o dia…”

TEIXEIRA DE PASCOAES

 I

       Há na human’alma um sentimento que se opõe ao outro; uma justaposição de sentimentos que se contradiz mas que, ao contrário da matéria nas teorias da física não se anulam, complementam. Um sentimento de alegria e outro de tristeza, de vitória e de derrota, um de grandeza e outro de pequenez, de força e de fragilidade, de luminosidade e de obscuridade, de dualidade e de unidade, de tudo e de nada, se não um, outro, ou ambos sentimentos, ou nenhum, ou o meio termo de um, dos dois, ou qualquer coisa como o interstício de tudo isto. É a capacidade da alma em se multiplicar e desmultiplicar, de se unir na diversidade. Somo-nos uma soma absurda de contradições, de sentimentos opostos que no fundo, extraído o sumo destas disparidades, nos faz irracionalmente coerentes. Habita em nós uma lógica existencial que nos ultrapassa, que vive prálem da nossa razão, da nossa tendência aritmética de, assente em silogismos, querer ver tudo com a luz do nosso limitado raciocínio. Queira o leitor interpretar estas palavras com toda a luz do seu entendimento para melhor compreender a personagem que vos trago.

         A nossa história começa no início do terceiro milénio da Era Cristã e acontece num reduto devoto a essa luminosa figura de Jesus. A nossa personagem, Érebro, na sua condição humana, participava no que no primeiro parágrafo explano. Era ele também uma soma absurda de aparentes contradições. Érebro tinha uma profissão incomum, tão incomum quão ele o era, sobre essa profissão trata esta história. Um acaso fizera dele um ser com características únicas e invulgares: movia-se com uma agilidade apurada, possuía sentidos ultrasensíveis e dominava o mundo das sombras visíveis. Já de criança dava por si a sentir um forte apelo pelos locais ermos e sombrios, pela noite e pela Lua. À medida do seu crescimento, dotado que estava de tamanhas aptidões, crescia o domínio que possuía neste reino das trevas. Pela maioridade era já de seu habitual hábito sentar-se ao lado de todos os acontecimentos, sem que a sua presença fosse percepcionada. Sabia o que acontecia e, por intuição, conseguia prever, com um certo grau de acerto, o que estaria por acontecer. Foram sem dúvida estas capacidades invulgares que o conduziriam à profissão de assassino. Não um assassino vulgar a cometer crimes banais, antes um assassino de elite cujos alvos eram proeminentes figuras mundiais que se constituíam como ameaças à ordem e à lei estabelecida. Questionem a lei a ordem estabelecida, não a personagem, é tudo quanto lhe peço querido leitor. Já direis no âmago das vossas entranhas que um criminoso é um criminoso e que os meios não justificam os fins, mas uma vez mais vos peço, não o condenem por antecipação, é preciso caminhar nos sapatos de alguém para lhe compreender a totalidade da alma e dos actos cometidos. Julgar do lado de fora é uma tarefa fácil, compreender os motivos e as razões por dentro é uma tarefa apenas ao alcance de uns quantos; o leitor situa-se onde? Entre o vulgo que julga sem conhecimento de causa e sem interesse no aprofundar das motivações humanas, ou ao invés é um esp’rito indagador que procura ver prálem de e por detrás das aparências? Mais vos digo, Érebro é a bondade personificada, e só há um atributo que possui em maior abundância que a bondade: o acreditar de forma cega naqueles em quem confia. Não me cabe, nem a mim nem aqui, fazer julgamento das motivações e razões dos seus mandantes, para tal teria de pôr em causa uma série de “verdades” estabelecidas e de conceitos vigentes e acredite que é a própria sociedade a dar cobertura ao mundo em que vivemos e que temos. A tarefa a que me propus é bem mais simples, embora algo complexa, contar-vos a história desta sombra humana. Este é o objecto e o objectivo deste conto, faço as ressalvas que faço para evitar preconceitos e pré conceitos que turvem a compreensão desta história.

         Érebro nasceu e cresceu numa terra consagrada a uma Ordem que, compreendendo a especificidade deste ser, cuidaram por lhe ministrar os ensinamentos necessários para que ele crescesse capaz de lidar com as suas especiais capacidades. Uma ordem cuja túnica alba postula a insígnia de Jesus Cristo, e não, não são eles os responsáveis pela profissão do nosso querido Érebro, nem tão pouco os mandantes ou interlocutores dos assassinatos por ele perpetuados. Eles limitaram-se a educá-lo e dar-lhe o conhecimento para fazer uso das suas características tão especiais. Instruíram-no nos segredos da Ordem e iniciaram-no esp’ritualmente no conhecimento esotérico de que são portadores. Podemos induzir que são eles os responsáveis pelo lado bondoso da nossa personagem. E digo induzir porque o que sucede no segredo da Ordem não extrapola para o exterior.

II

         A Ordem tomou conhecimento da sua existência era ele ainda uma criança, por intermédio de um dos seus acólitos, o Joaquim, só aos acólitos era permitido a convivência com os albicastrenses, sem que estes soubessem ou desconfiassem da existência desta Ordem, por diversos motivos, secreta. Passeava Joaquim por um fim de tarde quando se cruzou com Érebro e logo lhe achou alguma diferença. Intrigado com a criança, procurou informação mais detalhada e pormenorizada, informando os monges da Ordem do seu achado. Estes num mediato incumbiram um dos seus mais valorosos cavaleiros da missão de trazerem tal criatura à sua presença. Queriam inquiri-lo e averiguar da “tal” diferença mencionada por Joaquim. O livro das profecias apontava para o surgimento, no início do terceiro milénio, de um ser agraciado com características únicas neste local demiurgo por eleição. A sua missão no mundo não estava clarificada nas escrituras, contudo era um humano especial cuja protecção e acompanhamento precisava de cuidados especiais. A Ordem não se imiscuía em demasia nas demandas do mundo moderno, zelavam por cuidar da espiritualidade desta alba castro. A sua principal função era a de protecção deste centro espiritual e cuidar pelos seus habitantes: os albicastrenses.

         A tarefa fora incumbida ao Sancto Cavaleiro Barrocal, a missão não era fácil, o que não impediu Barrocal de a concretizar, auxiliado por um oráculo ancião, Endovélico. Endovélico era um oráculo Lusitano que se recolhia no monte barrocal, o monte devoto a este Sancto cavaleiro. A complexidade deste trabalho centrava-se em dois factos fundamentais, o ser Érebro uma criança esquiva e difícil de encontrar e o facto de o próprio cavaleiro não se poder deixar ver pelos populares. Sobre este encontro numa ocasião mais propícia vos falarei, por ora e agora a esta hora importa que foi concluída com êxito e que os monges chegaram ao conhecimento da criança confirmando o que já desconfiavam, ele era o ser anunciado no livro das profecias. Cabia-lhes agora cuidar por que nada lhe faltasse e assumir a sua educação complementar bem como a sua iniciação nos segredos da Ordem.   

         Cresceu Érebro bem acompanhado e bem iniciado, ciente de que lhe estava destinado um futuro que lhe não pertencia. Acatou e aceitou os seus desígnios sem contestação, convertendo-se num assassino a mando de outras Ordens. Ordens que dominavam o chamado mundo moderno, eram eles os que estavam por detrás de todos os acontecimentos, principalmente os mais nefastos. Não havia guerra no mundo que não tivesse a sua mão ou na qual eles não estivessem na origem. Quando um inimigo mais poderoso lhes surgia, ali estava a solução: Érebro. Este quando retornava a Albicastro recolhia-se em penitência junto dos monges que lhe albergavam as agruras e as confissões. Todas as suas missões aconteciam fora de Castelo Branco, a cidade era o seu refúgio, a sua casa esp’ritual. Aqui praticava o bem e auxiliava os necessitados. Passeava frequentemente pelas sombras nocturnas da urbe e acompanhava o que sucedia com interesse e preocupação.

Certa vez, precedendo um trabalho, saiu a meditar, escondido pelas suas amigas sombras e vislumbrou um grupo de cães vadios que faziam de um par de olhos brinquedo de ocasião. Entrou sorrateiramente numa casa onde encontrou restos de ossos, trouxe-os e largou-os junto dos cachorros, para assim os distrair e partir em busca do dono destes berlindes que por certo já estaria desesperado sem eles. Encontrou-o, era o Diogo, um albicastrense por quem ele nutria especial carinho e admiração, pela forma perseverante como ele se opunha ao regime.  Dirá o leitor mas se ele também se opunha porque é que colaborava de forma tão horripilante? E eu pergunto-lhe: podemos opor-nos ao nosso destino? Não, não me responda, medite na questão no íntimo de si mesmo…

         Chegou-se-lhe pelo silêncio da escuridão e interpelou-o na altura em que este amaldiçoava o mundo e a sua actual condição:

         - Por Santa Bárbara! Hoje se tivesses feito falta, eu por certo inda estaria em casa!

- Pois por Santa Bárbara pois que nada tem a santa a ver com o teu infortúnio, livra-a por isso do teu praguejar.

- Han…Quem sois?! Quem está aí?!

- Um amigo chamo-me Érebro…

- Érebro preciso de ti.

- Eu sei, por isso estou aqui. Os teus olhos vão ali redondos e ausentes de ti, perto do terno eterno edifício da Caixa. Agarra o meu braço…

         Sentiu-lhe alguma desconfiança, o que era normal, apesar de saber quem era o Diogo, não se conheciam pessoalmente, nunca outrora travaram conhecimento ou diálogo. Sucedera porém este estar numa situação aflitiva, Érebro acreditava no destino e julgou ser esta a ocasião certa para se conhecerem. Sentia a necessidade de falar com alguém, na véspera de partir para as execuções a sua alma tremia e o seu esp’rito indagava duvidas sobre a sua maldita condição. Far-lhe-ia bem distrair os pensamentos.

- Sombra?!

- Sim, assim me conhece o vulgo… quem de mim apenas ouviu falar. Mas tenho nome… Érebro.

- Érebro, tu és a Sombra de quem tanto se fala… contam que te mexes pela escuridão, pela sombra das coisas… que qualquer uma te basta, a de um poste de electricidade ou até tão só o galho de uma árvore. Por isso eu não te ouvi chegar e mesmo que estivesse de olhos postos não te veria. És como a esfinge, silencioso e como a noite, avisível. Tens os movimentos de um felino e o som de uma boca fechada.

- Conheces Teixeira de Pascoaes? O Poeta dos poetas fala assim:

 

“No princípio era a sombra, não a sombra

Passiva e projectada, mas um voo

De sombra que a si mesmo se projecta;

Um fumo que era chama adormecida,

Aparência de morte e silêncio,

Mas escondendo a aparição da vida…”

 

- Hum… belo texto e misterioso também, tal como a névoa que envolve as conversas a teu propósito. Perdoa-me se te aborreço na insistência, mas tanto se diz a teu respeito que se torna normal o aguçar da curiosidade no esp’rito. E agora esta situação, tu e a tua presença… sim este braço é material. É teu não é?!

- Sim… 

- Dizem que és curto de palavras, conciso, falas pouco mas acertadamente…

- Espera!

Não havia sombra que os conduzisse apesar da proximidade da matilha. Encontravam-se a uma distância que ainda não era segura para abandonar o Diogo por sua conta e risco. Teria de procurar outra caminho mais seguro, um que os deixasse todavia mais perto.

- Vem.

- Érebro… que foi, que é que…

- Vamos… por aqui não tenho caminho que te aprochegue aos teus olhos, temos de voltar atrás e seguir outro que te deixe o suficiente próximo deles. Os cães vadios estão distraídos. Vem…

- Esta situação e a minha aflição fez-me mal-educado, nem sequer me apresentei…

- És o Diogo. Sei quem tu és. Eu sei muita coisa, sucede a quem caminha por muito lado, na ausência que certa matéria retém da luz.

- Estou deveras impressionado… bem impressionado, sinto na tua voz confiança e determinação, inteligência e sapiência. Contudo provocas-me alguma estranheza… o teu comportamento sombrio e a tua nebulosa personalidade, ages como se não fosses de aqui, da Terra, se bem me faço entender. A tua voz parece ter a lonjura dos tempos. E leio isto nas escassas e directas palavras que tens utilizado que é o que mais me impressiona.

- O percurso inda é longo, dirigimo-nos à rua Drá drá, contornamos a Praça e chegamo-lhes pela Av. 1º de Maio… como vês temos tempo de conversa e a boca da sabedoria abre-se a quem a sabe escutar. Não me entendas porém com esse tom de quem vê Nossa Senhora de Fátima na Cova de Iria, sou da mesma realidade que te constitui. Parapsicologias à parte sou tal qual tu, da mesma substância… o fenómeno que me move os sapatos é, segundo a ciência, um acaso; eu digo-me comummente que é o meu triste alegre Fado. Seja qual for a razão ou o motivo desta minha particularidade sombria, tal não foi projectado ou desejado por mim, surgiu-me com a mesma naturalidade com que começamos a falar ou a andar, ainda na inconsciência que a minha consciência tinha de Si, durante a tenra infância… 

- Afinal não és tão curto de palavras quanto consta!

- Sabes, somos filhos das oportunidades e das situações… o ocaso que te trouxe a esta cega condição foi o acaso que me trouxe até ti… quanto ao que por daí consta de mim, são no essencial palavras despidas de rigor que habitam as bocas de quem me desconhece. Tenho amigos de longas e de curtas conversas, amigos feitos pela juventude e infância e amigos feitos pelas circunstâncias, mas esses são geralmente os que menos falam de mim.

- Circunstâncias como esta em que a ausência de óculos que te vejam criou?

- Sim… assim podemos assentir, embora o conhecimento prévio que fazia de ti foi o empurrão primordial para te ajudar.

- Se assim não fosse não me auxiliarias?!

- Claro que sim, embora, o mais provável, doutra ou noutra forma… mas, e perdoa-me mais uma vez esta ironia… como vês, esta é a situação resultante e não outra. Extrapolar sobre o que poderia ter sido é especular e, conceber cenários mentais é alicerçar o que existe no reino mental, aqui, nesta realidade que é o reino animal, o facto é outro. Este nosso presente é o teu futuro passado, passo a habitar a tua mnése como uma figura sonora, visível nas palavras que os teus ouvidos auscultam.

- Efectivamente a tua voz tem a impressão do raio e a firmeza do trovão, marcar-me-ão sem réstia dúvida o esp’rito e as minhas reminiscências futuras.

- Não é a minha voz mas a tua condição auditiva, aguçada pela ausência dos seus pares que te ilude… a profundidade que escutas no que digo não está em mim mas nas palavras e na sua condição de seres perpétuos. São estas que vêm desde o primórdio dos tempos, paradigma perdido, e são elas o transporte das ideias e dos significados que cavalgam ao lado da espécie humana na sua epopeia existencial. As nossas bocas nada são senão instrumentos da sua existência respirada… a nossa massa encefálica a mansarda do mundo das ideias… espera… pára… faz silêncio!

Aproximava-se alguém, Érebro reconheceu a voz de um deles, era o acólito Joaquim. Um amigo de longa data. Fez silêncio absoluto, não se podia denunciar, nem tão pouco dar a conhecer o que acontecia ao Diogo, não que não confiasse no Joaquim, antes pela sua companhia, o Jorge. Uma personagem interessante, sem dúvida, e que era amigo de longas conversas, mas este não era o local e aquela não era ocasião para se entreterem à conversa, até porque sabia de antemão que Jorge era um curioso crónico. Faria perguntas pertinentes e impertinentes e poderia colocá-lo numa situação delicada. O tempo escasseava, sabia que os ossos não iriam segurar por muito tempo os canídeos. Deixá-los-ia passar sem se denunciar.

- … Dizia… tempo…

- … Ando…

- … Tempos idos…

- … Diz-me mais, conta, conta…

- … Meu caro… espera, escuta!

Um esp’rito guarda da cidadela viera pousar nos ombros de Érebro, vinha confiar-lhe alguns dos pormenores da sua próxima vitima e a sua localização. Teria de deixar a cidadela ainda esta madrugada, a Coruja Branca trazia-lhe as informações e as ordens da sua missão. Teria de partir para Haia, a sua vítima era um dos líderes do movimento contestatário francês que se refugiara na Holanda. Uma Ordem maçónica liberal desejava ver-se livre deste potencial líder de massas. O Joaquim e o Jorge estavam agora a escassos metros deles.

- O que foi Joaquim?!

- Escuta… é a Coruja Branca!

- Aquela de quem versam tantas estórias…

- Sim meu caro, essa mesma. Conheces alguma das lendas e dos mitos oraculares desta ave da noite?

- Não mas estou deveras ansioso que me possas contar alguns… consegues vê-la, onde está?

- Não, não a vejo mas reconheço-lhe o silvar. Não te preocupes em vê-la pois só se mostra a quem quer.

- Mas conta Joaquim, conta as histórias que dela se contam…

- Assim seja meu caro e disponível amigo, se os ouvidos inda te não ardem do meu falar…

Afastam-se ao ritmo das palavras do acólito. Deu-lhes um tempo e um espaço que julgou suficiente e depois retomou o seu caminho.

- Prossigamos, teus olhos guardam por ti ansiosos… e não posso assegurar o quanto tempo lhes resta até os cães vadios lhes tornarem a pegar e prosseguirem o deambular pelas ruas nuas da noite da cidadela. Vamos… Como vês esta forma de existência também tem os seus percalços, todas as formas de existência os têm. Existir é modelar o barro da nossa existência mental e material, unitária e diversa. Existir é escrever o livro da vida, mesmo que seja com transparências. Como ainda agora o fizemos. Influímos nos outros directa e indirectamente, como os outros em nós. A nossa presença não tem que ser visual, ou até sequer presencial, como este grafite nesta parede que agora não vês, cujo autor está lá Deus sabe onde. A ideia dele esteja ele onde estiver, está aqui…

- Sabes alguma coisa acerca da Coruja Branca?

- Chegamos. Mais dois passos em frente e ficas em ângulo de visão para com um dos teus olhos, passas a estar por tua conta.

- Já…

- Teremos outras ocasiões para falar, agora o que é importante: a tua visão. Despeço-me aqui…

Esperou uns segundos para confirmar a cabal resolução do problema do Diogo e partiu. Já estava na posse dos dados que lhe faltavam para o próximo assassinato. Tratava-se de um jovem de apenas vinte anos. Um perigo em potência… diziam os maçons que lhe destinaram o trabalho. Não se convencia de todo, mas este era o seu destino e não se sentia capaz de o contrariar. Amaldiçoava-se e amaldiçoava este já maldito mundo onde a ambição pelo poder ditava regras. Dentro de poucas horas tinha um comboio para a Gare do Oriente, o seu voo estava marcado para a hora de almoço. O comboio partia pela madrugada, tão pouco lhe valeria de muito ir-se deitar, o uso e o costume faziam-lhe saber por antecipação que não conseguiria pregar olho. Decidiu ir até ao monte barrocal, far-lhe-ia bem a companhia amiga da Lua e das estrelas. 

A minha meia praia da existência

Agora que chego à metade da vida paro e reparo, por um instante, no que fiz dela, e no que poderia ter sido. 
Sou, por completo, um falhado na vida... nada fiz que merecesse aprovamento ou aceitação, o que, nos tempos que correm, me deixa tristemente feliz. Ser vencedor hoje impleca 3 preceitos que repugno por inteiro:  ser hiperexcitado (comummunte dito por pró-activo); ser amoral nas atitudes, apesar de ter todas as criticas morais e éticas na ponta da lingua; e, possuir uma incapacidade gritante de pensar.
Os dias de hoje só se compadecem, enaltecendo, os indivíduoscujas características excelsas estejam adentro destes pregaminhos.
É por isso que, desde que acordo e me levanto até que o meu corpo moído pela existência se deita, falho redundamente na vida; obtendo dos outros o pasmo da incompreensão. 
Falho na vida possuindo argumentos aparentes para triunfar mas eu penso, reflicto antes de agir e moldo o meu comportamento por padrões de honestidade moral e ética que se não compadecem nem adequam ao momento presente. E no meio de tudo isto sou, felizmente, um triste falhado. Há na minha constituição intima um factor inibidor que me não deixa triunfar...

domingo, 1 de julho de 2007

SONHO POR UM POENTE



“Sorria e entristecia num instante,
Como se lhe tocasse, ao mesmo tempo,
O crepúsculo da tarde e do levante.”

Teixeira de Pascoaes

I

- São horas! – Grita-me a consciência – É tarde! – Ecoa assustada – Corre! – Retorna aflitiva – É cedo… – Replico numa languidez de movimentos em desafio à lógica imposta.

Trrrrrrrriiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim

Haaaaaaa!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Abro os olhos… O inoportuno medidor de tempo com um mata-sonhos incorporado.
César de mim mesmo, acordo com o dia a prometer-me um poente.
Derrubo a preguiça e levanto-me, mais um dia guarda por mim. Que vestir?! Qualquer coisa. Em contra corrente aos tempos modernos a minha teimosia em achar da roupa o que ela é: roupa; agasalho, uma leve brisa anima o exterior.
O cigarro. A rua que o meu apartamento habita. Não sei que pensar do mundo, ele sorri e não se incomoda, também não pensa nada de mim. A pastelaria por baixo da minha casa. A bica e o pastel de nata. Um alvoraçar interior neste sentir lusitano – A bica – ergo-me já dentro em mim até ao acordar tardio que o meu corpo teimou se adiantar. Largo um largo vago olhar ao dia que aí vem: inconclúo. A manhã é um tédio – mais pelo movimento que pelo ócio – é a altura da existência em que tudo acontece sem que nada aconteça; é quando o homem – Sisifo em si – empurra a metáphora da pedra montanha acima; é quando todos os esforços, por inglórios que sejam, se semelham glórios. O importante é fazer, manter a engrenagem em movimento. Para quê e porquê pouco importa. Assim o ditam os ditames convencionais da civilização remanescente da revolução industrial; há um sentido de tarefa cumprida com um simples: fiz algo.
Vasculho os bolsos com a esp’rança quimérica de que uns trocos aconteçam. Pouco acontece. Recordo então a agenda do dia: formalizar a minha candidatura formal de emprego. Disperto, meu Ser, triste com a derrota momentânea ao vil metal, rende-se ao sonho d’outrem a que os néscios chamam realidade, por ser o sonho deste a acontecer a todos. E eu, qu’em meus sonhos de ser César de Roma, nunca o quis senão p’ra mim mesmo com o esquecimento todo que o despertar traz, encolho os ombros e decido-me à entrevista. A necessidade usa-me os dias, por isso sonho com o poente… é que a beleza que me é dada aos olhos faz-me esquecer momentaneamente o sufoco constante em que vivo. Nesse momento fugaz sinto-me gente e retorna ao meu sentir a integridade que me foi retirada face às dívidas e vergonhas financeiras em que me encontro. Podem tirar-me tudo mas não me roubam a capacidade de me deslumbrar e a possibilidade de sonhar com outros mundos e outras realidades que me ficaram por acontecer. Um hedonismo habita o lado esquerdo da minh’alma.
O edifício onde tenho de formalizar a minha candidatura fica junto ao centro comercial Santiago. Preciso desse emprego para poder comprar o pão e pagar a renda. Faz algum tempo que não tenho um trabalho certo e regular. A situação complica-se a cada dia que passa e os patrões fazem uso da dificuldade em encontrar trabalho para baixar os salários e retirar todas as regalias laborais que o governo ainda não dizimou. Hoje em dia, dois empregos não são suficientes para fazer face às despesas banais do dia a dia: a renda, a luz, a água, a mercearia, a roupa, etc. O desespero financeiro e o desalento habitam as casas dos portugueses. A precariedade da situação leva a supor o pior, não há um horizonte que se nos apresente. O caricato de tudo isto é que não se vislumbram mudanças nem tão pouco vontade por parte dos cidadãos em que tal aconteça. Resta-me pois o consolo do poente e a esperança de que em breve os portugueses abram os olhos e, claro está, que consiga o tal emprego que me permita minorar a minha situação periclitante.









II




O metro de cronos tem o ponteiro dos segundos a empurrar o dos minutos para o zero enquanto o anão, trepidante, jaz quase nas dez. Nas mãos, um tiquêt, durante uma frase de tempo, faz de mim o número 078. Sento-me num aguenta-rabos plástico-azulado. Na parede, severo à minha espera, o mostrador digital deixa entrever o número 065. À minha volta outros corpos de almas vagas, vagueiam entre o sonho entre-tempos e a atenção devota ao mostrador. Uma eternidade guarda a minha espera. Entre o esperar uns momentos e o viver essa mesma quantidade de tempo vai toda a diferença do aborrecimento.

Plinck… 066.

Galgou um número e re-ecoaram-se-me, com uma esperança alentadora, as palavras do Fernandes «Passa por lá e preenche a ficha, do resto trato eu». Prometeram-me uma cunha, e este é o país das cunhas. O factor C domina o país para o bem e para o mal e, prálem desse mesmo bem e desse mesmo mal.

Plinck… 067… 068…069… 070… 071… eternidade… 072… 073… 074… 075… 076…


À minha esquerda um rapaz tímido, ou quiçá sabichão na arte da sedução, mira entre-modos para a rapariga de defronte. Bonita por sinal. Esta, impaciente, bate o pé em sinal de protesto semi-incomodativo pela condição que a todos irmana… longa espera.
O seu pé estancou… ela nota que é notada… seu pé, agora em pernas cruzadas, balança silencioso entre a direita e a esquerda… o jogo da sedução enche e preenche a atmosfera… troca de olhares e sorrisos, primeiro tímidos e fugazes, para depois, longos e cúmplices, para por fim, plenos numa unidade simbiótica.

Plinck… 077.

Ah! É Ele!

Que crueldade numérica!

Hesita… levanta-se… o longo corredor chama por ele… avança… pára… recua… dirige-se-lhe com o coração palpitante… uma ânsia estranha apodera-se dela… ele dúvida e re-olha o corredor… cabisbaixa o horizonte e retoma o caminho do número. Desapareceu corredor fora com a tristeza toda sentada na alma da rapariga. Quiçá ali morreu a possibilidade de um grande amor; ou quiçá ali ele viveu durante um fragmento de tempo infinito. Oxalá haja um reencontro, oxalá!

Plinck… 078.

Ah, por fim! Sou eu.

Do princípio ao fim do corredor, são doze passos mal contados. No fim, uma senhora de expressão inerte, uma bárbie a pilhas, pede-me o nome.
- Jorge – respondi.
- Siga-me – pronunciou por entre os lábios semi-estanques enquanto me retirava o tiquêt das mãos e o largava num caixote de lixo urbano. Ah! É aqui que deixo de ser número: abotoei-me.
Fui conduzido a uma pequena sala onde uma secretária, encimada por pilhas de papéis, deixava entrever um homenzinho atarracado de ar simpático e olhar fugaz.
- Hum! Sr. Jorge presumo?
- Efectivamente.
- Hum! Esta incompetente não falhou desta vez. A frequência com que troca os nomes é escabrosa, raramente acerta… hum… vamos ao que interessa: você vem da parte do Fernandes, não é assim? – Aquiesci positivamente com a cabeça – Nome?... Idade?... Morada?... Estado Civil?... Escolaridade?... Empregos anteriores?... – E lá ia perguntando enquanto uma aranha me dividia a atenção em distracção…
– Religião?
- Religião!? – Admirei-me interrogativo.
- Sim, qual é a sua religião?
- Religião! Não Tenho!
- Hum… É ateu?!
- Ateu!?
- Sim, ateu. Aquele que não acredita em Deus.
- Não, não, isso eu não sou.
- Hum… então é agnóstico?
- Agnóstico!?
- Sim, agnóstico. Aquele que ignora se Deus existe.
- Não, não, isso eu não sou. Acredito numa força criadora e na sua existência metaphisica.
- Sim mas tem de ter uma religião, uma confissão, uma seita, um sei lá… algo!
- Não. Olhe, acredito num nosso criador e procuro estar em comunhão constante com ele. Sempre que posso passeio pela natureza de que sou e deslumbro o meu esp’rito com o milagre da vida, mas religião, essa casual cultural circunstância, não, não tenho.
- Sim mas você tem de ter uma religião… É católico? Protestante? Ortodoxo? Cristão que seja?... É Budista? Hindu? Brâmane? Xintoísta? Rastafari?... Pratica a Cabala Judaica? Professa o Al Corão? Algo? – Bramiu em desespero de causa e efeito.
- Não – Esta minha resposta deixou-o deveras pensativo.
- Perdoe-me Sr. Paulo…
- Jorge.
- Quem?!
- Nada, esqueça…
- Como ia dizendo Sr. Ricardo, você tem de ter uma religião, toda a gente tem uma. Além de todo o mais é imprescindível para preencher o formulário formal de formalização de emprego. Não há outra solução e a hipótese que me aventa não se encontra presente nestes formulários, logo não existe – Asseverou sério.
- Mas eu não tenho uma religião.
- Sem religião nada feito – Vociferou irritado – Volte outro dia e traga uma por favor – A realidade caiu-me ainda mais pesada sobre os ombros. Levantei-me arrastado e desolado. Somos livres de opinar desde que esteja em conformidade com o permitido. E eu, homem livre que me penso, pago a factura de tal insolência: homem livre.
E agora ou, onde encontrar uma religião?!



III



Saio para a rua da desilusão com a sensação de um vazio ridículo. O Sol alto não ma’nima’lma neste momento em que me sento lado a lado com o absurdo, num alberga-cansaços d’avenida d’marcada como d’mercado. Gente circula a toda a extensão do perímetro da minha visão. Tanta gente alheada da percepção da outra gente que a rodeia! Tanta que não pode ser tanta! Revasculho os bolsos, o estômago pede-me o almoço. Olho para os parcos trocos que tilintam na palma da minha mão e vejo uma torrada e um chá reconfortarem-me o corpo e o esp’rito. Ergo-me na direcção de uma transversal. Há toda uma distância financeira entre os cafés da avenida e os das transversais.
Por mais voltas que dês ao cubo, o quinto elemento está sempre do outro lado.
O café na transversal alberga-me o corpo e a desilusão «Sem religião nada feito… volte outro dia e traga uma por favor». Nasci já num mundo sem Deus ou Deuses em que acreditar ou creditar, é o acto religioso já um demiurgo em si: danças, ritos e mitos convivem desde sempre com o Ser. Muito antes do postulado das religiões que morrem já havia o comportamento religioso. A religião morre na sua forma conhecida; o comportamento – intrínseco que é ao Ser e ao Ser-se – constrói as futuras religiões que lhe advêm.
Empurrada a chá a torrada e já com o esp’rito saciado lá tornei para a tarde que me aguardava. Corria o Sol prazenteiro p’las ruas que encruzilham a cidadela e as horas faziam-se pastar pelo inútil quando, sem bússola que me desse norte, ou destino que me desse sorte, sorri à vida e decidi ir até ao monte que leva por nome Barrocal. Com o “guardador de rebanhos” na algibeira das ideias e a vontade dos grandes homens nas pernas, fiz-me ao passo do caminho. Como não distasse muita distância do sítio de onde vinha para o sítio para onde ia – abire, adire – Lá fui chegando pela estação de caminhos-de-ferro. Junto à passagem de nível, depois da discoteca, onde se sinaliza o trânsito dos ícones da moribunda revolução industrial. Sem parar, atravessei para este lado da linha, onde já é Barrocal: o bairro. Portal de acesso ao monte, aqui têm lugar as últimas casas e as últimas construções feitas por mão humana. Um pequeno bairro residencial com algumas dezenas de casas, pequenas na sua maioria, e dois tascos – O café Barrocal e o Locomotiva – último respiro cinzento que os pulmões provam. Aqui findam os últimos eflúvios urbanos!
O tasco locomotiva fica dois figurados passos por defronte mim, à direita. No interior, pelo canto d’olhar, entrevi dois dedos de conversa. O Joaquim habitava-lhe uma mesa e não sendo eu personagem que se coíba ou prive, dos seus afazeres sociais, sem me fazer rogado, entrei:
- Olá Joaquim!
- Olhó Jorge! Então meu caro, bons óculos o vejam. Como tem passado Vossa Excelência?! – Disse no seu habitual bem-humorado tom jocoso, sem esconder a surpresa que o vestia.
- Bem, bem-haja.
- Não tem de quê Vossa Mercê, bem-haja também você. Mas senta-te rapaz que nem a tarde inda findou nem a noite tam pouco chegou. Senta-te – Insistiu no gesto de me esticar uma cadeira – Mas diz-me que bons ventos te trazem?
- Ah! Querido amigo, sem emprego que me encha os bolsos de dinheiro e o corpo de cansaço e após uma entrevista de emprego inconcluída por não ter religião, com o Sol a espreitar esta ténue Primavera, decidi sossegar o esp’rito e requisitar um poente ao nosso fraterno monte amigo.
- Inda bem… Inda bem… não o desemprego claro está, mas a visita ao nosso monte… venha daí outro copo Ti-Zé que a este nosso amigo seca-lhe a boca e a alma, o mundo vai-lhe destruindo os sonhos que o nosso monte ajudou a construir.
- Ora Ti-Zé! Venha daí um recipiente para um traçado amado!
- Não! Traçado não, por Sant’ana que este é bom demais para ser estragado! – Exclamou assustado o Joaquim.
- Tens razão. – Confirmei com o rótulo na mira das minhas órbitas visuais. – Conta-me, que te deu hoje que tão bem regalas o paladar. Fazes anos ou saiu-te o Lusomilhões?
- Não meu caro, nem uma cousa nem outra lousa. Felizmente inda não envelheci mais um ano e infelizmente a sorte ainda se não tornou minha nubente… Então esse copo Ti-Zé?... Este foi o Pedro que o pagou…
- Já vai… já sai… já cá está – dizia o Ti-Zé no gesto mecânico de fazer chegar um copo à nossa mesa.
- O Pedro?! Por que esp’ritos?!
- Perdeu uma aposta…
- Perdeu uma aposta?!
- Sim, teimou que… – auto-interrompeu-se e emprestou o copo aos lábios. De golo bebeu o meio copo que lhe restava para a par de igualdade os encher a ambos – … Teimou que subia e descia a Meihora em menos de um nada… – E aqui largamos ambos uma gargalhada de encher todo o espaço.
A Meihora é uma rocha com formato fálico. Aos seus pés, pequenos sofás graníticos ladeiam um metro quadrado de pedra que constrói um chão seguro para aqueles que invocam o Deus Fósforo. Sabe quem tentou ou viu tentar que a rocha dita por Meihora, subir sobe-se mas descer; dela ninguém se consegue baixar!
- E como é que desceu?!
- Como tal frondosa criatura desceu? Elementar meu caro Jorge, elementar. Esperamos a meia-hora que ordena a tradição e depois levamos-lhe o auxílio de umas escadas.
- Pois, só assim…
- Sim, só assim… – Aqui o Joaquim fez mais um dos seus característicos silêncios, curtos e introspectivos, e tornou – Diz-me, conheces a Lenda da Meihora?
- A Lenda da Meihora!? Não!
- Contou-ma um velho que vaga no nosso monte… um eremita que raramente se deixa ver. Eu próprio vi-o tão só um par de vezes e em apenas uma delas cheguei à fala com tal misteriosa criatura… Endovélico, disse ele de sua graça.
- Endovélico?!... Por Viriato, e quem é esse?!
- Deixa-o para um depois, pois por ora importa a estória que ele me legou… como dizia, da lenda… Num tempo que a memória colectiva já não guarda por certa, penso que por atemporal, aquando da morte de um valeroso cavaleiro chamado Barrocal…
- Um cavaleiro chamado Barrocal!? – Interrompi novamente cheio de surpresa.
- Sim, mas não me perguntes p’la sua estória pois essa não ma sei… vais tornar a perturbar-me as palavras?
- Não, não. Prossegue.
- Como quando as minhas palavras falavam, dizia, aquando da morte deste valeroso herói, as Horas…
- As Horas?!... Ops… desculpa.
- Sim, as Horas: Talo, a Primavera; Carpo, o Verão; e Auxo, o Inverno. Filhas de Témis e de Zeus, são as divindades do panteão grego que presidem à ordem da natureza e das estações do ano… Zeus e Témis sabes quem são?!
- Sim, sei. Zeus, filho de Crono e de Reia, é o Deus dos fenómenos atmosféricos. Aquele cuja trovoada, cheia de relâmpagos e trovões nos faz orar a Santa Bárbara…
- Que o tempo e os tempos idos outorgaram como Deus de entre os Deuses, pronuncio do monoteísmo que adviria. É representado com os seus atributos de soberano: a águia, o trovão e a vitória… mas continua Jorge, continua… e Témis…
- E Témis, uma de suas esposas, filha de Urano e de Geia. É ela a regente divina da ordem estabelecida e das leis que regem a justiça. A lei dos nossos dias roubou-lhe a imagem, temos uma estátua dela nos paços do concelho… de olhos vendados segura numa mão uma balança e na outra, uma espada.
- Exactamente, agora se o meu caro mo permite, continuo a minha narração. A não ser visto está que as minhas palavras te doam nos tímpanos e os meus dizeres te chocalhem as ideias…
- Não Joaquim! P’lo Zeus que nomeava há momentos prossegue, são mel aos meus ouvidos e ao meu entendimento as tuas palavras… prossegue Joaquim, prossegue.
- Como contava, aquando da dramática morte deste exuberante e portentoso cavaleiro, percursor do esp’rito da nossa cavalaria templária, abriu-se uma brecha no mundo que nos é conhecido p’los sentidos e todos os elementos se alteraram entre si, no percurso que perfazem p’la matéria. Durante um fragmento de tempo, sem mesura nas medidas do nosso tempo, todas as coisas terrestres estremeceram, perdendo a sua consistência original. O gasoso tornou-se líquido, o líquido sólido, o sólido ficou gasoso ou seja as cousas saíram da sua ordem nas lousas do mundo. E as ondas (esses elementos que os esp’ritos novos de século XXI percepcionam com curiosidade aguçada) mutaram entre si. Permitindo a quem era vivente presenciar a cor do som e ouvir, límpida e cristalina, o som que a luz emitia. E entende isto com quanta compreensão te-lo permita o esp’rito querido amigo.
- Eu tento Joaquim, eu tento… mas as Horas, onde entram as Horas Joaquim. Que fizeram elas?
- As Horas Jorge foram a fonte originária de todas estas altercações.
- Como assim?
- Dentre todos os heróis que vagavam e vagaram a redondez do mundo, o Barrocal era o mais apreciado e amado por estas entidades. As virtudes do seu carácter, a integridade da sua personalidade, bem como todas as suas acções e atitudes sempre tão vestidas de bondade e generosidade, tornavam-no num patamar de admiração, um exemplo à raça dos mortais. Como vossa excelência, Dom Jorge, se recorda ou deveria recordar de há instantes atrás: as Horas são as entidades que presidem à ordem da natureza. Estas, ao tomarem conhecimento da morte deste, mergulharam numa tristeza profunda, inconsolável e sem precedentes. Impregnadas de dor largaram todos quantos afazeres as ocupavam, dando assim origem ao quadro caótico que atrás te descrevia. Claro está, logo tornaram às suas tarefas, reordenando tudo de novo na harmonia devida. Mas já nada voltaria a ser como dantes. Nunca tal sequer sucedera. Durante esses instantes em que a ordem da natureza navegou sem leme, a tristeza das Horas foi tanta que o tempo atmosférico se alterou. Uma nova e triste estação do ano surgiu…
- Uma nova estação do ano, o Outono dizes?
- Sim, mas calma, não ponhas o pé diante do sapato… As lágrimas que estas verteram caíram sobre o seu berço de vida, o local de nascença do Cavaleiro Barrocal, sem que a ordem estivesse assegurada, e eram pedras as lágrimas que caíam…
- Porque o liquido se tornara sólido…
- Sim, são estas as pedras que jazem no solo do nosso fraterno monte amigo. Uma delas, a rocha dita por Meihora, foi a lágrima que caiu sobre o ponto exacto do nascimento do nosso herói, no leito da sua germinação, fazendo nascer o Outono e assim às três se juntou a quarta e quatro temos hoje nas estações do nosso clima. De aí essa brisa triste e profunda que de quando em vez varre o Outono. É a Meihora a suspirar de tristeza pela sua origem trágica, pela funesta morte desse herói lendário.
Na nossa mesa um silêncio solene selou com respeito a conversa tida. Um sorriso, uns golos de bom vinho, uma conversa, agora desbaratada, sobre as curvas da vida e o tempo que não vi passar. A hora do poente estava próxima.
- Queres vir Joaquim?
- Onde?
- Ao nosso querido monte amigo, a hora do crepúsculo aproxima-se e tenho-me prometido um poente.
- Por quem sois meu caro, óbvia a resposta que vos entrego. Vamos pois que já não tarda e bem sabes o quão efémero é esse belo momento.

sábado, 30 de junho de 2007



Uma história sem olhos…


CÃES VADIOS
I


Sói ser hábito meu, nestes dias em que a hora finda do crepúsculo me deixa sem nada que fazer, tal vagamundo, passear-me pelas ruas de Albicastro sem propósito ou intenção alguma; deixar os pés andarem sem destino ou direcção. Com a retina a encher-se das imagens estáticas, das casas e das ruas, que perfazem a minha colecção de mnéses. Faço destes passeios, não a procura de uma pátria prometida, mas a fuga imaginária desta terra perdida… Não sei se é a placidez das cores que o Sol colora quando se põe, se a necessidade intrínseca ao Ser e ao Ser-se que mo impõe; se é a poesia, se a mecânica das coisas que mo inflige. Não sei e tam pouco me importa sabe-lo. Sei que os meus passeios e estas Horas já se nubaram há muito tempo. Faço deste hábito o monge que habita a minh’alma, e nada há de mais pertinente, nos dias que passam, que os cuidados que teimosamente imprimimos à Alma, à nossa, à Humana… Esta espécie de higiene mental que são os meus passeios têm-me levado e trazido a muitos sítios. Ao Castelo e ao Cansado, à Quinta da Granja e à das Violetas, ao Barrocal e às Palmeiras, aos Três Globos e à Sr.ª de Mércoles, até junto do Ocresa e à Taberna Seca, à avenida do general sem medo, a do Humberto Delgado, à 1º de Maio, ou até aqui, à Av. Nuno’Álvares.
Esta é a avenida do Outono e da Primavera (marca no esp’rito coordenadas de transição). Aqui os passeios são largos e voltados para os largos passeios, as árvores dão sombra e as casas e os prédios ainda deixam entrar o céu redondo. Castelo Branco é no seu grande somatório uma urbe cinzenta onde diariamente os sonhos são cilindrados por toneladas de betão e alcatrão que manietam os destinos da autarquia; é o cifrão do cimento que se encarrega da sua condução e da sua direcção mal urdida. É certo que não nos é exclusivo, apesar de nos ser ostensivo, partilhamos esta dor e esta mágoa com outros cidadãos de outras cidades cinzentas, mas é aqui a minha aldeia e é aqui que me dói o coração. Esta é a cidade que me abraça os sentidos, e estes, são o diapasão da minha razão.
Os meus olhos perdem-se neste lusco-fusco e nesta hora tardia em que o jantar senta a agitação à mesa da refeição. A noite já espreita e o Sol já espraia o seu esplendor noutras aldeias e noutros corações. Farto d’alucinação visual qu’é a vida, retiro os berlindes a que chamamos olhos e pouso-os no passeio. Às apalpadelas vou-me sentar no banco oposto ao exposto… Sentado num lado, desde o outro lado, vejo este lado: oh! Que triste figura aquela que deixa cair os braços, nus de tatuagens de guerra, sobre os aguenta-rabos da avenida. Que triste figura tísica e obsoleta sem gel séc. XX, fato lustroso-brilhante ou sapatos-quadrados-engraxados para a noite das luzes suburbanas que vivem à superfície da espuma dos dias. Que triste figura que inda guardas no bolso a possibilidade do sonho e na algibeira a esp’rança no futuro. Cruzado futurista que selas a tua alma no magno esp’rito desta cidade templária. Já fazes parte doutra raça mental, estás possuído pelo demiurgo séc. XXI. Pois por quem sois: Pã, Orpheu e Cristo! Que realidade misteriosa guardas no fundo da Alma? Que sentido desconhecido te conduz os sapatos? Pergunto-me, afirmo-me e desconheço-me. Sou uma busca sentida voltada para o futuro, com o corpo, de coração latejante, a obrigar-me ao presente.
Que doce solicitude esta, ver-me desde o outro lado…
O mundo de amanhã, hoje, somos nós quem o faz!






II



Ah! Vejo a realidade material saltitar descompassadamente, como dois elevadores que se metamorfosearam em duas molas saltitonas. De relance, um membro húmido e grotesco larga viscosidades na escuridão de uma lambidela. Na distracção dos meus pensamentos – em que os olhos ausentes olham para dentro – uma pequena matilha de cães vadios viu nos meus olhos dois brinquedos sedutores… Mal me ouso mexer, o que vejo lá diante deixa-me cego aqui… E agora?! Agora estou aqui, corpo sem olhos e ali os meus olhos sem o corpo de mim. Tenho de recuperar as minhas órbitas oculares. Tenho de reaver a minha visão. Sinto duas realidades muito distintas tomarem conta de mim: uma, aquela onde os meus berlindes num reboliço redondo estão; outra, esta onde me sinto resto de mim.
- Por Santa Bárbara! Hoje se tivesses feito falta, eu por certo inda estaria em casa!
- Pois por Santa Bárbara pois que nada tem a santa a ver com o teu infortúnio, livra-a por isso do teu praguejar.
- Han…Quem sois?! Quem está aí?!
- Um amigo. Chamo-me Érebro…
- Érebro preciso de ti.
- Eu sei, por isso estou aqui. Os teus olhos vão ali redondos e ausentes de ti, perto do terno eterno edifício da Caixa. Agarra o meu braço…
Deixo-me levar, as minhas órbitas oculares estancaram, algo distraiu a matilha e é verdadeira a localização dos meus berlindes. Um dos olhos está de defronte para o edifício da Câmara Municipal, junto ao da Caixa Geral de Depósitos. Nada me faz duvidar deste Érebro, e além de tudo o mais, preciso dele. Tenho de recuperar a minha visão. Contudo, estranha a forma como ele se move, como nos locomove. Ele é silencioso e esquivo. Não caminha pelo centro do passeio. Érebro… hum… nas teogonias gregas era o irmão da noite. Existiam antes de tudo e antes dos Deuses, Érebro liberou Nyx e por esta começou o mundo…
- Sombra?!
- Sim, assim me conhece o vulgo… quem de mim apenas ouviu falar. Mas tenho nome… Érebro.
- Érebro, tu és a Sombra de quem tanto se fala… contam que te mexes pela escuridão, pela sombra das coisas… que qualquer uma te basta, a de um poste de electricidade ou até tão só o galho de uma árvore. Por isso eu não te ouvi chegar e mesmo que estivesse de olhos postos não te veria. És como a esfinge, silencioso e como a noite, avisível. Tens os movimentos de um felino e o som de uma boca fechada.
- Conheces Teixeira de Pascoaes? O Poeta dos poetas fala assim:

“No princípio era a sombra, não a sombra
Passiva e projectada, mas um voo
De sombra que a si mesmo se projecta;
Um fumo que era chama adormecida,
Aparência de morte e silêncio,
Mas escondendo a aparição da vida…”

- Hum… belo texto e misterioso também, tal como a névoa que envolve as conversas a teu propósito. Perdoa-me se te aborreço na insistência, mas tanto se diz a teu respeito que se torna normal o aguçar da curiosidade no esp’rito. E agora esta situação, tu e a tua presença… sim este braço é material. É teu não é?!
- Sim…
Sinto-lhe o sorriso por detrás desta afirmativa.
- Dizem que és curto de palavras, conciso, falas pouco mas acertadamente…
- Espera!
Estancamos, algo lhe prendeu os movimentos.
- O que foi?!
Larga-me e sinto a sua ausência imediata. Refoco a atenção no olhar. Os meus berlindes têm permanecido estáticos. Algo distraiu os cachorros, oscilam entre um que outro sitio sem contudo saírem do mesmo lugar. Não consigo ver o que os move mas algo os mexe…
- Vem.
- Érebro… que foi, que é que…
- Vamos… por aqui não tenho caminho que te aprochegue aos teus olhos, temos de voltar atrás e seguir outro que te deixe o suficiente próximo deles. Os cães vadios estão distraídos. Vem…
Sinto-lhe o braço junto da minha mão e novamente me apoio nesta sombra que me conduz.
- Esta situação e a minha aflição fez-me mal-educado, nem sequer me apresentei…
- És o Diogo. Sei quem tu és. Eu sei muita coisa, sucede a quem caminha por muito lado, na ausência que certa matéria retém da luz.
- Estou deveras impressionado… bem impressionado, sinto na tua voz confiança e determinação, inteligência e sapiência. Contudo provocas-me alguma estranheza… o teu comportamento sombrio e a tua nebulosa personalidade, ages como se não fosses de aqui, da Terra, se bem me faço entender. A tua voz parece ter a lonjura dos tempos. E leio isto nas escassas e directas palavras que tens utilizado que é o que mais me impressiona.
- O percurso inda é longo, dirigimo-nos à rua Dadrá, contornamos a Praça e chegamo-lhes pela Av. 1º de Maio… como vês temos tempo de conversa e a boca da sabedoria abre-se a quem a sabe escutar. Não me entendas porém com esse tom de quem vê Nossa Senhora de Fátima na Cova de Iria, sou da mesma realidade que te constitui. Parapsicologias à parte sou tal qual tu, da mesma substância… o fenómeno que me move os sapatos é, segundo a ciência, um acaso; eu digo-me comummente que é o meu triste alegre Fado. Seja qual for a razão ou o motivo desta minha particularidade sombria, tal não foi projectado ou desejado por mim. Surgiu-me com a mesma naturalidade com que começamos a falar ou a andar, ainda na inconsciência que a minha consciência tinha de Si, durante a tenra infância…
- Afinal não és tão curto de palavras quanto consta!
Desta feita oiço audivelmente o sorriso quase riso que esboça, o que me permite asseverar do seu hipérbeo tamanho.
- Sabes, somos filhos das oportunidades e das situações… o ocaso que te trouxe a esta cega condição foi o acaso que me trouxe até ti… quanto ao que por daí consta de mim, são no essencial palavras despidas de rigor que habitam as bocas de quem me desconhece. Tenho amigos de longas e de curtas conversas, amigos feitos pela juventude e infância e amigos feitos pelas circunstâncias, mas esses são geralmente os que menos falam de mim.
- Circunstâncias como esta em que a ausência de óculos que te vejam criou?
- Sim… assim podemos aferir, embora o conhecimento prévio que fazia de ti foi o empurrão primordial para te ajudar.
- Se assim não fosse não me auxiliarias?!
- Claro que sim, embora, o mais provável, doutra ou noutra forma… mas, e perdoa-me mais uma vez esta ironia… como vês, esta é a situação resultante e não outra. Extrapolar sobre o que poderia ter sido é especular e, conceber cenários mentais é alicerçar o que existe no reino mental, aqui, nesta realidade que é o reino animal, o facto é outro. Este nosso presente é o teu futuro passado, passo a habitar a tua mnése como uma figura sonora, visível nas palavras que os teus ouvidos auscultam.
- Efectivamente a tua voz tem a impressão do raio e a firmeza do trovão, marcar-me-ão sem réstia dúvida o esp’rito e as minhas reminiscências futuras.
- Não é a minha voz mas a tua condição auditiva, aguçada pela ausência dos seus pares que te ilude… a profundidade que escutas no que digo não está em mim mas nas palavras e na sua condição de seres perpétuos. São estas que vêm desde o primórdio dos tempos, paradigma perdido, e são elas o transporte das ideias e dos significados que cavalgam ao lado da espécie humana na sua epopeia existencial. As nossas bocas nada são senão instrumentos da sua existência respirada… a nossa massa encefálica a mansarda do mundo das ideias… espera… pára… faz silêncio!
Obedeci-lhe com toda a minha vontade própria. Há alturas em que a razão cega e não vê, é então que o esp’rito entra em acção e acciona a intuição. O motivo deste: «espera…pára… faz silêncio» terá sua razão de ser. O absurdo da situação não é pão para a lógica, filha de Aristóteles, mas para a intuição, filha de Mnemosine. Hum… oiço passos, escuto vozes… vem aí alguém. Este é o motivo do silêncio e da quietude em que estamos mergulhados.

Toc, tac, tac, toc, tac, tac, toc, toc, tac…

As ondas sonoras indiciam a proximidade crescente de gente. Alguém cuja cegueira, distinta da minha, não permitirá aferir da nossa presença. As poucas palavras que já consigo identificar, bem como o som do caminhar, induzem-me à percepção de dois. Ser-me-ão reais, ser-lhes-emos inexistentes… a sombra deixa-nos invisíveis.
- … Dizia… tempo…
- … Ando…
- … Tempos idos…
- … Diz-me mais, conta, conta…
- … Meu caro… espera, escuta!
Também eu oiço nitidamente o silvo de uma coruja… tão nitidamente que ouso pensar vir de aqui, do meu companheiro nesta aventura… será Érebro a Coruja Branca?! Não, não pode ser… eu já a vi, majestosa e imperial, duma brancura tão casta e cândida que faz qualquer outro branco semelhar-se ao cinzento. Estará ela junto a nós?
- O que foi Joaquim?!
- Escuta… é a Coruja Branca!
- Aquela de quem versam tantas estórias?
- Sim meu caro, essa mesma. Conheces alguma das lendas e dos mitos oraculares desta ave da noite?
- Não mas estou deveras ansioso que me possas contar alguns… consegues vê-la, onde está?
- Não, não a vejo mas reconheço-lhe o silvar. Não te preocupes em vê-la pois só se mostra a quem quer.
- Mas conta Joaquim, conta as histórias que dela se contam…
- Assim seja meu caro e disponível amigo, se os ouvidos inda te não ardem do meu falar…
Afastam-se e com eles afasta-se o som das suas vozes. Muito diálogo lhes sobra por certo, um deles, o Joaquim, é conhecido por isso, pelos quilómetros de conversa a que habituou os seus convivas, em especial das lendas e mitos locais que ele tão bem conhece. Diz-se que são os seus ouvidos companheiros habituais de Endovélico, esse oráculo do panteão lusitano. O ruído dos seus passos desvanece até ao apagamento…
- Prossigamos, teus olhos guardam por ti ansiosos… e não posso assegurar o quanto tempo lhes resta até os cães vadios lhes tornarem a pegar e prosseguirem o deambular pelas ruas nuas da noite da cidadela. Vamos…
Estas suas últimas palavras deixaram-me apreensivo. Cuido por que nada aconteça às minhas órbitas oculares, sem elas sou menos eu e haverá menos de mim no meu mundo. Mais que o espelho da minh’alma, são-me o espelho do mundo à minh’alma…
- Como vês esta forma de existência também tem os seus percalços, todas as formas de existência os têm. Existir é modelar o barro da nossa existência mental e material, unitária e diversa. Existir é escrever o livro da vida, mesmo que seja com transparências. Como ainda agora o fizemos. Influímos nos outros directa e indirectamente, como os outros em nós. A nossa presença não tem que ser visual, ou até sequer presencial, como este grafite nesta parede que agora não vês, cujo autor está lá Deus sabe onde. A ideia dele, esteja ele onde estiver, está aqui…
- Sabes alguma coisa acerca da Coruja Branca?
Desta vez não sorriu, riu, inda que de forma subtil e discreta.
- Chegamos. Mais dois passos em frente e ficas em ângulo de visão para com os teus olhos, passas a estar por tua conta.
- Já…
- Teremos outras ocasiões para falar, agora o que é importante: a tua visão. Despeço-me aqui…
Larga-me e sinto-me desamparado. Dois passos em frente e vejo-me, disse ele. Assim faço. Ah! Ali estou eu, já me vejo. Vou d’encontro ao resto de mim. Um meu cercano tropeçar desajeitado afastou os cães vadios em todas as direcções, ainda um farrusco esfocinhou os meus olhos mas um – Xô cão! – que expeli já não mui equidistante salvaguardou-lhes a integridade física. Recoloquei-os e já cheio de mim suspirei… Uff!!! Escassezes de carne seguravam os canídeos. Já é noite, hoje é 4 de Maio, dia da inauguração da exposição OLHARES no Bar Património, vou até lá, é hoje que se escreve o amanhã.