A historia de uma Sombra…
“A Saudade o alegrava e entristecia…
É que ela faz a dor e o prazer,
Como a mesma luz faz a noite e o dia…”
TEIXEIRA DE PASCOAES
A nossa história começa no início do terceiro milénio da Era Cristã e acontece num reduto devoto a essa luminosa figura de Jesus. A nossa personagem, Érebro, na sua condição humana, participava no que no primeiro parágrafo explano. Era ele também uma soma absurda de aparentes contradições. Érebro tinha uma profissão incomum, tão incomum quão ele o era, sobre essa profissão trata esta história. Um acaso fizera dele um ser com características únicas e invulgares: movia-se com uma agilidade apurada, possuía sentidos ultrasensíveis e dominava o mundo das sombras visíveis. Já de criança dava por si a sentir um forte apelo pelos locais ermos e sombrios, pela noite e pela Lua. À medida do seu crescimento, dotado que estava de tamanhas aptidões, crescia o domínio que possuía neste reino das trevas. Pela maioridade era já de seu habitual hábito sentar-se ao lado de todos os acontecimentos, sem que a sua presença fosse percepcionada. Sabia o que acontecia e, por intuição, conseguia prever, com um certo grau de acerto, o que estaria por acontecer. Foram sem dúvida estas capacidades invulgares que o conduziriam à profissão de assassino. Não um assassino vulgar a cometer crimes banais, antes um assassino de elite cujos alvos eram proeminentes figuras mundiais que se constituíam como ameaças à ordem e à lei estabelecida. Questionem a lei a ordem estabelecida, não a personagem, é tudo quanto lhe peço querido leitor. Já direis no âmago das vossas entranhas que um criminoso é um criminoso e que os meios não justificam os fins, mas uma vez mais vos peço, não o condenem por antecipação, é preciso caminhar nos sapatos de alguém para lhe compreender a totalidade da alma e dos actos cometidos. Julgar do lado de fora é uma tarefa fácil, compreender os motivos e as razões por dentro é uma tarefa apenas ao alcance de uns quantos; o leitor situa-se onde? Entre o vulgo que julga sem conhecimento de causa e sem interesse no aprofundar das motivações humanas, ou ao invés é um esp’rito indagador que procura ver prálem de e por detrás das aparências? Mais vos digo, Érebro é a bondade personificada, e só há um atributo que possui em maior abundância que a bondade: o acreditar de forma cega naqueles em quem confia. Não me cabe, nem a mim nem aqui, fazer julgamento das motivações e razões dos seus mandantes, para tal teria de pôr em causa uma série de “verdades” estabelecidas e de conceitos vigentes e acredite que é a própria sociedade a dar cobertura ao mundo em que vivemos e que temos. A tarefa a que me propus é bem mais simples, embora algo complexa, contar-vos a história desta sombra humana. Este é o objecto e o objectivo deste conto, faço as ressalvas que faço para evitar preconceitos e pré conceitos que turvem a compreensão desta história.
Érebro nasceu e cresceu numa terra consagrada a uma Ordem que, compreendendo a especificidade deste ser, cuidaram por lhe ministrar os ensinamentos necessários para que ele crescesse capaz de lidar com as suas especiais capacidades. Uma ordem cuja túnica alba postula a insígnia de Jesus Cristo, e não, não são eles os responsáveis pela profissão do nosso querido Érebro, nem tão pouco os mandantes ou interlocutores dos assassinatos por ele perpetuados. Eles limitaram-se a educá-lo e dar-lhe o conhecimento para fazer uso das suas características tão especiais. Instruíram-no nos segredos da Ordem e iniciaram-no esp’ritualmente no conhecimento esotérico de que são portadores. Podemos induzir que são eles os responsáveis pelo lado bondoso da nossa personagem. E digo induzir porque o que sucede no segredo da Ordem não extrapola para o exterior.
II
A Ordem tomou conhecimento da sua existência era ele ainda uma criança, por intermédio de um dos seus acólitos, o Joaquim, só aos acólitos era permitido a convivência com os albicastrenses, sem que estes soubessem ou desconfiassem da existência desta Ordem, por diversos motivos, secreta. Passeava Joaquim por um fim de tarde quando se cruzou com Érebro e logo lhe achou alguma diferença. Intrigado com a criança, procurou informação mais detalhada e pormenorizada, informando os monges da Ordem do seu achado. Estes num mediato incumbiram um dos seus mais valorosos cavaleiros da missão de trazerem tal criatura à sua presença. Queriam inquiri-lo e averiguar da “tal” diferença mencionada por Joaquim. O livro das profecias apontava para o surgimento, no início do terceiro milénio, de um ser agraciado com características únicas neste local demiurgo por eleição. A sua missão no mundo não estava clarificada nas escrituras, contudo era um humano especial cuja protecção e acompanhamento precisava de cuidados especiais. A Ordem não se imiscuía em demasia nas demandas do mundo moderno, zelavam por cuidar da espiritualidade desta alba castro. A sua principal função era a de protecção deste centro espiritual e cuidar pelos seus habitantes: os albicastrenses.
A tarefa fora incumbida ao Sancto Cavaleiro Barrocal, a missão não era fácil, o que não impediu Barrocal de a concretizar, auxiliado por um oráculo ancião, Endovélico. Endovélico era um oráculo Lusitano que se recolhia no monte barrocal, o monte devoto a este Sancto cavaleiro. A complexidade deste trabalho centrava-se em dois factos fundamentais, o ser Érebro uma criança esquiva e difícil de encontrar e o facto de o próprio cavaleiro não se poder deixar ver pelos populares. Sobre este encontro numa ocasião mais propícia vos falarei, por ora e agora a esta hora importa que foi concluída com êxito e que os monges chegaram ao conhecimento da criança confirmando o que já desconfiavam, ele era o ser anunciado no livro das profecias. Cabia-lhes agora cuidar por que nada lhe faltasse e assumir a sua educação complementar bem como a sua iniciação nos segredos da Ordem.
Cresceu Érebro bem acompanhado e bem iniciado, ciente de que lhe estava destinado um futuro que lhe não pertencia. Acatou e aceitou os seus desígnios sem contestação, convertendo-se num assassino a mando de outras Ordens. Ordens que dominavam o chamado mundo moderno, eram eles os que estavam por detrás de todos os acontecimentos, principalmente os mais nefastos. Não havia guerra no mundo que não tivesse a sua mão ou na qual eles não estivessem na origem. Quando um inimigo mais poderoso lhes surgia, ali estava a solução: Érebro. Este quando retornava a Albicastro recolhia-se em penitência junto dos monges que lhe albergavam as agruras e as confissões. Todas as suas missões aconteciam fora de Castelo Branco, a cidade era o seu refúgio, a sua casa esp’ritual. Aqui praticava o bem e auxiliava os necessitados. Passeava frequentemente pelas sombras nocturnas da urbe e acompanhava o que sucedia com interesse e preocupação.
Certa vez, precedendo um trabalho, saiu a meditar, escondido pelas suas amigas sombras e vislumbrou um grupo de cães vadios que faziam de um par de olhos brinquedo de ocasião. Entrou sorrateiramente numa casa onde encontrou restos de ossos, trouxe-os e largou-os junto dos cachorros, para assim os distrair e partir em busca do dono destes berlindes que por certo já estaria desesperado sem eles. Encontrou-o, era o Diogo, um albicastrense por quem ele nutria especial carinho e admiração, pela forma perseverante como ele se opunha ao regime. Dirá o leitor mas se ele também se opunha porque é que colaborava de forma tão horripilante? E eu pergunto-lhe: podemos opor-nos ao nosso destino? Não, não me responda, medite na questão no íntimo de si mesmo…
Chegou-se-lhe pelo silêncio da escuridão e interpelou-o na altura em que este amaldiçoava o mundo e a sua actual condição:
- Por Santa Bárbara! Hoje se tivesses feito falta, eu por certo inda estaria em casa!
- Pois por Santa Bárbara pois que nada tem a santa a ver com o teu infortúnio, livra-a por isso do teu praguejar.
- Han…Quem sois?! Quem está aí?!
- Um amigo chamo-me Érebro…
- Érebro preciso de ti.
- Eu sei, por isso estou aqui. Os teus olhos vão ali redondos e ausentes de ti, perto do terno eterno edifício da Caixa. Agarra o meu braço…
Sentiu-lhe alguma desconfiança, o que era normal, apesar de saber quem era o Diogo, não se conheciam pessoalmente, nunca outrora travaram conhecimento ou diálogo. Sucedera porém este estar numa situação aflitiva, Érebro acreditava no destino e julgou ser esta a ocasião certa para se conhecerem. Sentia a necessidade de falar com alguém, na véspera de partir para as execuções a sua alma tremia e o seu esp’rito indagava duvidas sobre a sua maldita condição. Far-lhe-ia bem distrair os pensamentos.
- Sombra?!
- Sim, assim me conhece o vulgo… quem de mim apenas ouviu falar. Mas tenho nome… Érebro.
- Érebro, tu és a Sombra de quem tanto se fala… contam que te mexes pela escuridão, pela sombra das coisas… que qualquer uma te basta, a de um poste de electricidade ou até tão só o galho de uma árvore. Por isso eu não te ouvi chegar e mesmo que estivesse de olhos postos não te veria. És como a esfinge, silencioso e como a noite, avisível. Tens os movimentos de um felino e o som de uma boca fechada.
- Conheces Teixeira de Pascoaes? O Poeta dos poetas fala assim:
“No princípio era a sombra, não a sombra
Passiva e projectada, mas um voo
De sombra que a si mesmo se projecta;
Um fumo que era chama adormecida,
Aparência de morte e silêncio,
Mas escondendo a aparição da vida…”
- Hum… belo texto e misterioso também, tal como a névoa que envolve as conversas a teu propósito. Perdoa-me se te aborreço na insistência, mas tanto se diz a teu respeito que se torna normal o aguçar da curiosidade no esp’rito. E agora esta situação, tu e a tua presença… sim este braço é material. É teu não é?!
- Sim…
- Dizem que és curto de palavras, conciso, falas pouco mas acertadamente…
- Espera!
Não havia sombra que os conduzisse apesar da proximidade da matilha. Encontravam-se a uma distância que ainda não era segura para abandonar o Diogo por sua conta e risco. Teria de procurar outra caminho mais seguro, um que os deixasse todavia mais perto.
- Vem.
- Érebro… que foi, que é que…
- Vamos… por aqui não tenho caminho que te aprochegue aos teus olhos, temos de voltar atrás e seguir outro que te deixe o suficiente próximo deles. Os cães vadios estão distraídos. Vem…
- Esta situação e a minha aflição fez-me mal-educado, nem sequer me apresentei…
- És o Diogo. Sei quem tu és. Eu sei muita coisa, sucede a quem caminha por muito lado, na ausência que certa matéria retém da luz.
- Estou deveras impressionado… bem impressionado, sinto na tua voz confiança e determinação, inteligência e sapiência. Contudo provocas-me alguma estranheza… o teu comportamento sombrio e a tua nebulosa personalidade, ages como se não fosses de aqui, da Terra, se bem me faço entender. A tua voz parece ter a lonjura dos tempos. E leio isto nas escassas e directas palavras que tens utilizado que é o que mais me impressiona.
- O percurso inda é longo, dirigimo-nos à rua Drá drá, contornamos a Praça e chegamo-lhes pela Av. 1º de Maio… como vês temos tempo de conversa e a boca da sabedoria abre-se a quem a sabe escutar. Não me entendas porém com esse tom de quem vê Nossa Senhora de Fátima na Cova de Iria, sou da mesma realidade que te constitui. Parapsicologias à parte sou tal qual tu, da mesma substância… o fenómeno que me move os sapatos é, segundo a ciência, um acaso; eu digo-me comummente que é o meu triste alegre Fado. Seja qual for a razão ou o motivo desta minha particularidade sombria, tal não foi projectado ou desejado por mim, surgiu-me com a mesma naturalidade com que começamos a falar ou a andar, ainda na inconsciência que a minha consciência tinha de Si, durante a tenra infância…
- Afinal não és tão curto de palavras quanto consta!
- Sabes, somos filhos das oportunidades e das situações… o ocaso que te trouxe a esta cega condição foi o acaso que me trouxe até ti… quanto ao que por daí consta de mim, são no essencial palavras despidas de rigor que habitam as bocas de quem me desconhece. Tenho amigos de longas e de curtas conversas, amigos feitos pela juventude e infância e amigos feitos pelas circunstâncias, mas esses são geralmente os que menos falam de mim.
- Circunstâncias como esta em que a ausência de óculos que te vejam criou?
- Sim… assim podemos assentir, embora o conhecimento prévio que fazia de ti foi o empurrão primordial para te ajudar.
- Se assim não fosse não me auxiliarias?!
- Claro que sim, embora, o mais provável, doutra ou noutra forma… mas, e perdoa-me mais uma vez esta ironia… como vês, esta é a situação resultante e não outra. Extrapolar sobre o que poderia ter sido é especular e, conceber cenários mentais é alicerçar o que existe no reino mental, aqui, nesta realidade que é o reino animal, o facto é outro. Este nosso presente é o teu futuro passado, passo a habitar a tua mnése como uma figura sonora, visível nas palavras que os teus ouvidos auscultam.
- Efectivamente a tua voz tem a impressão do raio e a firmeza do trovão, marcar-me-ão sem réstia dúvida o esp’rito e as minhas reminiscências futuras.
- Não é a minha voz mas a tua condição auditiva, aguçada pela ausência dos seus pares que te ilude… a profundidade que escutas no que digo não está em mim mas nas palavras e na sua condição de seres perpétuos. São estas que vêm desde o primórdio dos tempos, paradigma perdido, e são elas o transporte das ideias e dos significados que cavalgam ao lado da espécie humana na sua epopeia existencial. As nossas bocas nada são senão instrumentos da sua existência respirada… a nossa massa encefálica a mansarda do mundo das ideias… espera… pára… faz silêncio!
Aproximava-se alguém, Érebro reconheceu a voz de um deles, era o acólito Joaquim. Um amigo de longa data. Fez silêncio absoluto, não se podia denunciar, nem tão pouco dar a conhecer o que acontecia ao Diogo, não que não confiasse no Joaquim, antes pela sua companhia, o Jorge. Uma personagem interessante, sem dúvida, e que era amigo de longas conversas, mas este não era o local e aquela não era ocasião para se entreterem à conversa, até porque sabia de antemão que Jorge era um curioso crónico. Faria perguntas pertinentes e impertinentes e poderia colocá-lo numa situação delicada. O tempo escasseava, sabia que os ossos não iriam segurar por muito tempo os canídeos. Deixá-los-ia passar sem se denunciar.
- … Dizia… tempo…
- … Ando…
- … Tempos idos…
- … Diz-me mais, conta, conta…
- … Meu caro… espera, escuta!
Um esp’rito guarda da cidadela viera pousar nos ombros de Érebro, vinha confiar-lhe alguns dos pormenores da sua próxima vitima e a sua localização. Teria de deixar a cidadela ainda esta madrugada, a Coruja Branca trazia-lhe as informações e as ordens da sua missão. Teria de partir para Haia, a sua vítima era um dos líderes do movimento contestatário francês que se refugiara na Holanda. Uma Ordem maçónica liberal desejava ver-se livre deste potencial líder de massas. O Joaquim e o Jorge estavam agora a escassos metros deles.
- O que foi Joaquim?!
- Escuta… é a Coruja Branca!
- Aquela de quem versam tantas estórias…
- Sim meu caro, essa mesma. Conheces alguma das lendas e dos mitos oraculares desta ave da noite?
- Não mas estou deveras ansioso que me possas contar alguns… consegues vê-la, onde está?
- Não, não a vejo mas reconheço-lhe o silvar. Não te preocupes em vê-la pois só se mostra a quem quer.
- Mas conta Joaquim, conta as histórias que dela se contam…
- Assim seja meu caro e disponível amigo, se os ouvidos inda te não ardem do meu falar…
Afastam-se ao ritmo das palavras do acólito. Deu-lhes um tempo e um espaço que julgou suficiente e depois retomou o seu caminho.
- Prossigamos, teus olhos guardam por ti ansiosos… e não posso assegurar o quanto tempo lhes resta até os cães vadios lhes tornarem a pegar e prosseguirem o deambular pelas ruas nuas da noite da cidadela. Vamos… Como vês esta forma de existência também tem os seus percalços, todas as formas de existência os têm. Existir é modelar o barro da nossa existência mental e material, unitária e diversa. Existir é escrever o livro da vida, mesmo que seja com transparências. Como ainda agora o fizemos. Influímos nos outros directa e indirectamente, como os outros em nós. A nossa presença não tem que ser visual, ou até sequer presencial, como este grafite nesta parede que agora não vês, cujo autor está lá Deus sabe onde. A ideia dele esteja ele onde estiver, está aqui…
- Sabes alguma coisa acerca da Coruja Branca?
- Chegamos. Mais dois passos em frente e ficas em ângulo de visão para com um dos teus olhos, passas a estar por tua conta.
- Já…
- Teremos outras ocasiões para falar, agora o que é importante: a tua visão. Despeço-me aqui…
Esperou uns segundos para confirmar a cabal resolução do problema do Diogo e partiu. Já estava na posse dos dados que lhe faltavam para o próximo assassinato. Tratava-se de um jovem de apenas vinte anos. Um perigo em potência… diziam os maçons que lhe destinaram o trabalho. Não se convencia de todo, mas este era o seu destino e não se sentia capaz de o contrariar. Amaldiçoava-se e amaldiçoava este já maldito mundo onde a ambição pelo poder ditava regras. Dentro de poucas horas tinha um comboio para a Gare do Oriente, o seu voo estava marcado para a hora de almoço. O comboio partia pela madrugada, tão pouco lhe valeria de muito ir-se deitar, o uso e o costume faziam-lhe saber por antecipação que não conseguiria pregar olho. Decidiu ir até ao monte barrocal, far-lhe-ia bem a companhia amiga da Lua e das estrelas.